OS DOCUMENTÁRIOS DE NAGISA OSHIMA
O Lugar do Autor nos Documentários de Oshima
Lúcia Nagib
O espectador habituado ao Oshima do cinema de ficção pode não reconhecê-lo de imediato nos documentários que dirigiu para a televisão entre 1962 e 1977. Nestes, os recursos técnicos invariavelmente exíguos, a composição formal à primeira vista anódina e os finais frequentemente inconclusivos parecem se contrapor ao Oshima voluntarioso e agressivo, que já apresentava uma estética clara desde o primeiro filme, Cidade do Amor e da Esperança (1959), e perfeitamente acabada a partir do segundo, Conto Cruel da Juventude (1960).
É preciso, talvez, julgar ambos os gêneros antes pelo efeito que causam do que pela aparência para se chegar ao mesmo autor. De fato, tanto nos documentários quanto no cinema de ficção, Oshima invariavelmente choca. A lançar-se mão do velho artifício da separação entre forma e conteúdo, poder-se-ia dizer que ele choca, na ficção, através da forma, e, nos documentários, através do conteúdo. No primeiro caso, existe um autor impositivo, que decide e domina a forma de seu objeto, enquanto nos documentários o autor parece esconder-se atrás de seu objeto, concedendo-lhe humildemente o direito de dar forma a si próprio. Assim, descobrir o “autor” nos documentários de Oshima pode constituir a chave para compreendê-los - mesmo porque era justamente do “cinema de autor” que se tratava na época da famosa Nouvelle Vague Japonesa, da qual Oshima foi o principal mentor.
É fácil entender que, no cinema de ficção japonês, a instituição do autor significasse romper com os gêneros e as padronizações das grandes produtoras em prol da vontade individual e soberana do diretor. Foi isso que Oshima fez desde o início, provocando atritos que resultaram no rompimento com a Shochiku e na fundação da associação de diretores Sozosha, que seria uma das primeiras sementes do cinema independente japonês. Porém, quanto ao documentário, e em particular o de televisão, a situação era diversa. Enquanto o cinema de ficção japonês se firmava numa longa história, tratava-se aqui de um terreno praticamente virgem. Quando Oshima rodou seu primeiro documentário para a Nippon Television (NTV), Juventude no Gelo (Korino Naka no Seishun), em 1962, inaugurando a série "Teatro sem ficção”, a televisão japonesa ainda não completara 10 anos, e o gênero documentário dava seus primeiros passos na emissora NHK, com os trabalhos pioneiros de Susumu Hani, contemporâneo de Oshima e outra figura central da Nouvelle Vague Japonesa.
Desse modo, era natural que os diretores adotassem uma postura inocente, de “quem aprende enquanto faz” (na conhecida frase de Glauber Rocha). “Quando fiz Soldados Esquecidos (Wasurerareta Kogun) é que percebi o que é o documentário”, afirma Oshima. Foi para rodar o documentário Monumento à Juventude (Seishun no Hi, 1964) que fez sua primeira viagem ao exterior (à Coréia), e a atitude de descoberta e aprendizado ainda se mantém mesmo em momentos tardios, como durante a realização da série sobre Bangladesh - Joy, Bangla! (Joi! Bangura), Lahman, Pai de Bengala (Bengaru no Chichi, Fiahman) e A Terra Dourada - um ano numa aldeia camponesa de Bengala (Oogon no Daichi - Bengaru Nohson no Ichinen) - de 1972 a 1976.
Como se sabe, tais características, bem como a própria opção pelo documentário são típicas dos “cinemas novos” que afloraram em várias partes do mundo entre as décadas de 50 e 60. Era natural que também os japoneses, após constatarem os equívocos da Segunda Guerra, quisessem redescobrir a realidade “nua e crua” à sua volta. Movimento semelhante ocorrera em outro país derrotado, a Itália, com o neo-realismo, e ocorreria ainda tardiamente na Alemanha, com o “novo cinema alemão”. Porém, algo de específico distingue o Japão com relação ao gênero documentário. Na verdade, como insiste em ressaltar Donald Richie, a realidade tal como se apresenta aos olhos nunca mereceu destaque no cinema japonês, razão pela qual o documentário jamais conseguiu firmar uma tradição ou alcançar expressão no país. Dando preferência à “apresentação” em detrimento da “representação” (na terminologia de Richie), os japoneses sempre tiveram por hábito acrescentar, desde os benshi (comentadores ao vivo do cinema silencioso), narrações e explicações verbais destinadas a oferecer ao espectador uma interpretação pronta das imagens e, portanto, dos fatos que elas narram. Era essa tendência que predominava nos poucos documentários produzidos no Japão até a época de Oshima e sua geração, manifestando-se na figura do narrador off impessoal e onisciente, que dava às imagens um caráter estandardizado e propagandístico.
Como se vê, havia, sim, um estado de coisas contra o qual se voltar, mesmo no campo inexplorado do documentário. Tratava-se de eliminar esse autor “fantasma”, que impunha ao espectador uma leitura única dos fatos. Só dessa maneira poderia firmar-se o “verdadeiro” autor, humano e subjetivo. Oshima não hesita, por exemplo, em equiparar os documentários japoneses militaristas aos comunistas: mesmo que com conteúdo ideológico oposto, sua forma didática e autoriária lhe parecia idêntica. Para ele, portanto, “romper”, no campo do documentário, significava antes de tudo deixar que as imagens falassem por si. Suas primeiras tentativas ainda lançam mão, esporadicamente, de narrações explicativas em off, mas estas vão sendo progressivamente abandonadas até o ápice em A Guerra do Pacífico (Daitoa Senso), de 1968. Este filme é a melhor ilustração da presença máxima do autor através do mínimo de intervenção.
A Guerra do Pacífico faz um panorama extensivo da Segunda Guerra Mundial, tal como vista na época pelos japoneses. As imagens e o som utilizados foram extraídos integralmente de material de arquivo. A única intervenção do narrador atual é a discreta advertência, em forma de subtítulo, que abre o filme: “Este filme foi rodado na íntegra durante a Grande Guerra da Ásia Ocidental. A narração, o som e a música foram gravadas pelos japoneses de então. Filmes adquiridos do estrangeiro também foram narrados por japoneses de então. Este é um registro da Grande Guerra da Ásia Ocidental na forma de nossa experiência enquanto japoneses.” É utilizando esse material aparentemente neutro que Oshima fez um de seus documentários de maior impacto. Bastou que imagem e som se deslocassem no tempo para que se tornassem flagrantes suas inverdades e a forma como costumavam ser manipulados. Sem acrescentar qualquer comentário próprio, e lançando mão apenas do saber do espectador atual, que conhece os resultados desastrosos da guerra para o Japão, Oshima compôs uma denúncia contundente, não apenas da má fé do governo japonês na época, mas da concepção viciosa dos documentários e cinejornais de então. Menções referentes à “nossa força invencível”, à “prosperidade do Império” e à “disposição para a morte” dos japoneses adquirem uma tonalidade trágica justamente pela naturalidade com que são pronunciadas. Este é talvez o verdadeiro Nuit et Brouillard du Japon, título que Oshima usou para um de seus filmes de ficção, mas que ressoa aqui com mais força, já que a narrativa estatística fria das atrocidades nazistas, no Nuit et Brouillard original de Alain Resnais, provoca esse mesmo efeito de choque através de técnicas de distanciamento.
Igual técnica narrativa aparecerá mais tarde em outros filmes de Oshima, como Biografia de Mao Tse-Tung (Denki: Mo-Taku-To), de 1976, mas neste já sem tomar partido definido e sugerindo um autor maduro, com concepções políticas mais amplas e complexas.
O “Bom” e o “Mau” Japão
O campo onde a presença do autor aparece com maior clareza, nos documentários de Oshima, é na escolha temática. A participação do Japão na Segunda Guerra Mundial, suas causas e conseqüências, em contraposição aos destinos individuais dos japoneses: eis o tema da vida do diretor, explorado incessantemente seja em seus filmes de ficção ou nos documentários. Por feliz coincidência, ela se encaixava numa das propostas de Jun’ichi Ushiyama, produtor que, no início dos anos 60, convidou Oshima para rodar para a NTV a série de documentários que se estenderia até fins dos anos 70. Ushiyama tinha dois campos principais de interesse, o cinema etnográfico e a história contemporânea japonesa. O primeiro apresentava poucos atrativos para Oshima, mas a segunda, sobretudo porque Ushiyama queria tratá-la de uma maneira “pessoal”, constituiu uma excelente oportunidade para Oshima desenvolver as princiapis questões que o preocupavam.
Talvez por estar ainda num período de formação - e provavelmente sob a influência da atmosfera revolucionária dos anos 60 -, a televisão mostrou-se aberta para um tipo de experimentalismo difícil de se imaginar no Japão de hoje. Tadao Sato lembra que apenas com Oshima e seus contemporâneos a televisão japonesa passou a mencionar o nome do diretor de seus documentários. De fato, Ushiyama desejava introduzir o cinema de autor na TV, e seu intento foi plenamente preenchido ao longo de 15 anos por Oshima, que, embora dentro de estreitos limites de tempo e dinheiro, dispôs de total liberdade para rodar o que queria e como queria. Assim, observar o conjunto de seus documentários hoje nos fornece uma visão clara de seu universo, além de elementos valiosos para a compreensão de seu cinema ficcional. Com respeito à temática, desde logo divisam-se dois campos principais:
1. A história do Japão, tendo por centro a Segunda Guerra, e representada por material de arquivo;
2. Personagens individuais, cujos destinos encontram-se de uma ou outra maneira atados à guerra; estes são filmados no momento presente, na maioria das vezes por meio de entrevistas.
Essa dupla perspectiva está em consonância com o que Oshima definiu como sendo a orientação de seus documentários: “Tinham que ser um documento do objeto, mas também um documento do próprio cineasta”. Ao menos num primeiro momento, objeto e sujeito encontram-se em oposição: o Japão institucional e coletivo é a razão direta dos problemas do ser individual, com o qual o narrador pretende identificar seu ponto de vista. Aquele aparece como a fonte do “mal", enquanto este seria o repositório do “bem”.
Essa separação simples, de ressonâncias rousseauístas, é típica sobretudo da fase inicial dos documentários, da qual o principal representante é provavelmente Soldados Esquecidos, de 1963. O filme versa sobre os soldados coreanos que lutaram junto com o exército japonês na Segunda Guerra e que agora, feridos e inválidos, não conseguem do governo japonês, em vista de sua nacionalidade coreana, a pensão de guerra concedida aos japoneses em igual situação. As imagens mostram a revolta desse grupo de inválidos que vive de esmolas, enquanto insiste em seus protestos contra o governo. Num momento de forte apelo emocional, a câmera chega a focalizar as lágrimas que escorrem das órbitas vazias de um deles, que é cego. A pergunta que encerra o filme irá ressoar nos demais trabalhos desse período: “Somos nós, japoneses, realmente tão desumanos?”
Ao que parece, e segundo as declarações de Oshima, Soldados Esquecidos foi para ele uma verdadeira revelação, como que a descoberta da face negra do Japão. A partir de então, o povo coreano será, em seus filmes, o símbolo de resistência a governos autoritários, não apenas do Japão, mas mesmo da própria Coréia. Monumento à Juventude, por exemplo, filmado na Coréia em 1964, conta a história de uma garota que perdeu o braço direito nas lutas estudantis de 1960, após o que foi forçada à prostituição para sustentar a família. A deficiência física, tanto neste quanto em Soldados Esquecidos, constitui testemunha viva ao mesmo tempo da violência da elite dominante e da capacidade de sobrevivência dos oprimidos, por mais que se tente eliminá-los ou escondê-los.
Essa mesma idéia será retomada num dos momentos de maior brilho da filmografia da ficção de Oshima, O Enforcamento (1968), em que um coreano é condenado à morte, mas sobrevive à forca, embora acometido de amnésia (também uma deficiência física resultante da violência) com relação ao seu passado e, portanto, ao crime que supostamente cometeu. Antes deste filme, Oshima já compusera uma espécie de hino de exaltação à Coréia com Canções Lascivas do Japão (1967), no qual, em certo momento, se eleva este país ao berço histórico e cultural do Japão.
Tanto quanto Canções Lascivas do Japão, que trava uma espécie de batalha entre canções de opressão e canções de liberação, os demais filmes referentes à Coréia têm algo de musical ou se referem explicitamente à música - característica que, aliás, não é privativa destes filmes, mas que neles indica um certo desejo poético na expressão de simpatia e solidariedade. Diário de Yunbogi (1965) - geralmente classificado entre os filmes de ficção, mas que segue a estrutura dos demais documentários de Oshima - possui mesmo uma espécie de refrão, que é a repetição cadenciada e invocativa do nome “I Yunbogi”. É como se chama um garoto de rua coreano, que executa pequenos serviços como engraxar sapatos ou vender goma de mascar para sobreviver, e em cujo diário Oshima baseou este média-metragem, inteiramente composto de fotos tiradas durante sua estadia na Coréia. Também Monumento à Juventude tem um ritmo marcado pelo refrão da canção de Ton Sona, entoada pela menina prostituta a intervalos regulares: “O bonito botão de Ton Sona é desfolhado pelo vento frio”.
Ainda em 1972, esse clima romântico e humanista irá ressoar em Goze: As Cantoras Cegas Itinerantes (Goze: Momoku no Onna Tabigei-nin), sobre as cantoras cegas do interior do Japão, mas aos poucos irá se modificar, à medida que a presença do autor se torna mais forte e complexa. Em Giants (Kyojin-gun), do mesmo ano, Oshima passa a intervir pessoalmente como entrevistador, num filme que acrescenta informações novas quanto à sua relação com o Japão. Dedicado ao Giants, time de baseball (esporte predileto de Oshima) que colecionou contínuas vitórias ao longo de mais de duas décadas, o filme tem por escopo único, segundo nos informa a narração, pesquisar o “princípio da vitória”. Aqui, já não se encontra nenhum traço da postura crítica de A Guerra do Pacífico, ao contrário: o final anuncia o Giants como “o mais forte grupo humano produzido pela moderna sociedade do Japão”. Conclui- se, portanto, que o espírito de vitória que imbuiu o Japão da Segunda Guerra pode ter também sua versão “boa”.
Não é difícil supor que, ao criticar seu país atual, Oshima está, na verdade, lamentando a perda de um “outro” Japão. Antes do Japão mercantil e reificado da era Showa, que resultou no expansionismo cego por ocasião da Segunda Guerra, houve, segundo ele afirma, um Japão realmente forte, animado ainda pelo “lado bom” do samurai e construído por homens puros, que acreditavam no que faziam. Trata-se do Japão da era Meiji, marcado por uma série de sucessos políticos, sendo o mais formidável deles a vitória na Guerra Russo-Japonesa. (Pode-se reconhecer nesta preferência características da própria biografia de Oshima, ele mesmo descendente de samurais e formado em meio à elite intelectual conservadora de Kyoto.)
É este Japão que Oshima homanageia no interessante Recordação Viva da Batalha de Tsushima (Ikiteiru Nihonkai-kaisen, 1975). O filme se compõe basicamente de entrevistas, mais uma vez realizadas pelo próprio diretor, com sobreviventes (todos em torno dos 90 anos de idade) da famosa batalha naval de Tsushima, na qual o Japão, contra todas as previsões, venceu a Rússia com uma esquadra diminuta. Mais uma vez, faz-se a apologia do princípio da vitória, aqui, porém, com participantes de uma proeza que decidiu por bons anos o destino de um país.
Esse novo aspecto, que surge na fase tardia dos documentários, revela um diretor mais calmo e reflexivo, traços que se farão notar igualmente em seu cinema de ficção. Em 1978, Oshima irá mesmo se aventurar no gênero jidaigeki (filme de época), com O Império da Paixão, fugindo à sua costumeira crítica à contemporaneidade japonesa. Depois, em 1983, será a vez de Furyo - Em Nome da Honra, em que afinal o “bom” espírito de samurai irá se unir ao militarismo nefasto num mesmo personagem, caracterizando como inextricáveis os sentimentos de amor e ódio do diretor com relação ao Japão. Que esses sentimentos correspondem em igual medida “ao amor e ódio com relação a si mesmo”, como gosta de afirmar Oshima, não passa da consequência natural de um cinema que se pretende pessoal e subjetivo.
Ou mesmo anárquico. A despeito dos que insistem em classificar sua obra inicial de esquerdista, Oshima sempre pareceu rechaçar orientações políticas de qualquer espécie. Mesmo em seus documentários políticos, a ênfase nos protagonistas, ou seja, no indivíduo é tal, que o pano de fundo social parece se esfumar e desaparecer. Tomados isoladamente, esses personagens compõem algo como uma galeria de “teimosos”, resistentes a toda ordem superior. Os exemplos são vários e se estendem no tempo, desde Fortaleza do revoltado (Hankotsu no Toride, 1964), em que um velho revoltado instala seu castelo à beira de um rio para impedir a construção de um dique; até Shoichi Yokoi: Em Busca do Mistério de Seus 28 Anos em Guam (Yokoi Shoichi: Guamu to 28 Nen no Nazo o Ou), sobre um soldado japonês da Segunda Guerra que passou 28 anos escondido na selva de Guam sem saber que a guerra havia terminado.
Essa tendência, que pode ser também explicada como uma reação à uniformidade e ao coletivistmo do Japão, teve um efeito sensível no estilo da televisão japonesa, que a partir do fim dos anos 60 e ao longo dos 70 adotou a entrevista como método de boa parte de seus programas. Que esse sistema hoje tenha perdido muito da seriedade inicial não desmerece o pioneirismo de Oshima e seus contemporâneos, que pela primeira vez usaram um meio de comunicação de massa para pesquisar e valorizar o indivíduo.
Não cabe aqui discutir em que medida o traço coletivista até hoje dominante na sociedade japonesa provoca, em certos artistas, uma valorização exacerbada do indivíduo. O fato é que, em Oshima, essa tendênca perdura até o presente. Retomando extemporaneamente, em 1991, o gênero do qual se distanciara por 14 anos, Oshima afinal fez, para a BBC de Londres, um documentário sobre si mesmo e sua mãe, que é Kyoto - Terra de Minha Mãe (Kyoto - My Mother’s Place). Nele, além do costumeiro papel de entrevistador, o diretor encarna também o protagonista, sem receio de discorrer longamente sobre sua própria biografia. Sujeito e objeto enfim se tornam idênticos - porém, os germes de Kyoto já estavam presentes desde os primeiros documentários de Oshima.