Ó ABRE ABAS


Maracatus, cinemas e temporalidades
por Maia de Paiva

Nos primeiros minutos de prólogo uma cena entre a ficção e o documental sintetiza de forma contundente a realidade ainda atual do maracatu rural, manifestação típica do carnaval pernambucano. O saudoso Mestre Salustiano¹ enxota um grupo de cinegrafistas que descem de uma kombi e, sem qualquer cerimônia, começam a filmar a casa em que se encontram alguns caboclos de lança, com suas indumentárias expostas. Mestre Salu, ao vê-los, brada:

“Você quer aqui o quê? Filmar o maracatu? Chega de exploração, rapaz! (...) Filma meu maracatu, leva lá pro exterior, vende as filmagens, e aqui pro maracatu não trás nada pra sobreviver. Artista popular vive morrendo de esmola! Porque vocês é acostumado a chegar aqui, e usar nós, e ir simbora... Desapareça com a televisão daqui! Se suma mesmo, que eu não quero nem ver televisão aqui!”

Quem conhece minimamente o contexto dos brincantes da cultura popular espalhados pelo Brasil sabe que essa cena não é distante da realidade. É constante a exploração dessas tradições por parte do Estado, da mídia e de grupos privilegiados que desejam lucrar em cima de uma expressão cultural tão rica e fascinante, enquanto seus brincantes vivem em situação de extrema pobreza. No caso do Maracatu Rural – personagem central do curta-metragem dirigido por Marcelo Gomes –  sua elaboração estética, filosófica e espiritual extremamente complexa é fruto da pulsão de vida e resistência de grupos de trabalhadores rurais ligados à monocultura da cana-de-açúcar, na zona da mata de Pernambuco.

vlcsnap-2021-02-05-18h47m03s599

Maracatu, maracatus (1995) é uma produção interessante justamente por sua capacidade de ecoar a voz dos fazedores dessa cultura, retratando a complexidade ritualística, resistente e festiva dos cortejos do maracatu rural. Ao longo do filme, acompanhamos o processo de iniciação de um jovem, tornando-se caboclo de lança – figura chave desse folguedo. De início, é importante notar como a dicotomia tradição-modernidade é colocada em cheque no filme, para evidenciar como as influências contemporâneas coabitam com as tradições. Vemos um jovem dançando energicamente ao som do hardcore de Canibal, músico da periferia de Recife, para na cena seguinte ver no mesmo espaço-tempo outro rapaz ser convocado a tornar-se caboclo de lança por uma espécie de arauto-narrador que tece o filme.  

Essa correlação rompe com o ideal de oposição entre culturas, sugerindo um possível diálogo resistente entre elas. Essa articulação me parece simbólica de um filme produzido nos anos 90 em um Recife marcado pela explosão do movimento manguebeat, que misturava os ritmos locais, como o samba, maracatu e coco, com o hip-hop e o rock. A efervescência desse momento foi fundamental tanto para o fortalecimento de tradições da cultura popular, como para alavancar a cena cultural pernambucana, desaguando inclusive no nascimento de um fértil “cinema pernambucano”². Me parece, então, que o diretor do filme alia inteligentemente o registro poético de uma tradição carnavalesca secular e o retrato do momento histórico da cena cultural pernambucana.

O curta-metragem é também carregado de cores e sonoridades deslumbrantes e hipnóticas, tal qual o próprio maracatu. Uma cena marcante é quando os caboclos de lança encontram-se no meio de um canavial, como que subvertendo o espaço de exploração daqueles mesmos trabalhadores. Ou mesmo quando vemos um desfile multicolorido de caboclos de lança, junto a reis, rainhas e toda uma corte com seu estandarte, cruzando uma cidade histórica e depois pausando seus festejos para a passagem de um cortejo cristão. Isso nos leva a falar de outro tema central do filme: a religiosidade por trás do maracatu.

vlcsnap-2021-02-05-18h54m58s751

Em seu processo de iniciação para tornar-se caboclo, o jovem que acompanhamos no início passa por um rito de bênção sob a condução de uma mãe de santo. Vemos Dona Neta dançando e cantando, evocando entidades da tradição das religiões afro-brasileiras, enquanto abençoa as vestimentas do caboclo e o próprio rapaz. Esta cena reafirma a dimensão ancestral que há nesta festividade, os corpos que dançam e festejam o maracatu evocam e ocupam simultaneamente temporalidades distintas: passado, presente e futuro. E essa força política e ancestral ganha ainda mais força próximo ao fim do filme quando o arauto-narrador declara: “Maracatu não é só brincadeira. Maracatu é o grito do índio, do escravo. O grito que sai daqui de dentro contra as maldades do homem branco. Maracatu também é guerra!”

Ora, se maracatu é guerra devemos entender que um filme feito junto aos seus fazedores é também um instrumento dessa luta. O cinema aqui atua como um aliado na preservação e propagação dessa manifestação que ultrapassa a comum leitura conservadora do carnaval como um desbunde despolitizado. Maracatu, maracatus é um filme que diferencia-se da exploração feita por cineastas como aqueles enxotados por Mestre Salu através da participação direta de artistas e mestres que colaboram para a manutenção dessa manifestação. Verifica-se, assim, uma aliança potente entre realizadores e brincantes que afasta o cinema daquela relação extrativista criticada inicialmente. No entanto, resta uma dúvida: será que essa aliança ainda dá conta da apresentação de narrativas subalternizadas em tempos de uma crescente demanda por protagonismo dos sujeitos em suas histórias?

• • •

¹ Mestre Salustiano foi um proeminente mestre de Maracatu e Cavalo Marinho, fundador do Maracatu Piaba de Ouro e da Casa da Rabeca do Brasil. Falecido em 2008, aos 63 anos, Manoel Salustiano Soares recebeu em vida o título de Doutor e Patrimônio Vivo da Cultura Popular de Pernambuco, sendo um dos grandes nomes da luta pela preservação da cultura pernambucana. Disponível em: http://www.casadarabeca.com.br. Acesso em: 20 fev. 2021.

² Aqui me refiro ao reconhecido polo de produção audiovisual que se desenvolve em Pernambuco, desde meados dos anos 90, sendo Baile Perfumado (1996) um grande precursor da vasta safra de filmes plurais produzidos no estado. Várias dessas produções conquistaram inclusive projeção internacional, sendo capazes de deslocar a centralidade dada ao eixo Rio-São Paulo no cinema brasileiro, tornando o “cinema pernambucano” um marco contemporâneo.


O tambor chamou muitas
por Nayla Guerra

O tambor me chamou: assim Baby Amorim explica sua entrada para o Ilú Obá de Min.¹ Ao lado de outras sete companheiras, ela traz o relato de sua relação com o bloco. Como uma colcha de retalhos, o curta dirigido por Márcio Cruz (2016) costura os depoimentos individuais para contar a história do coletivo.

É na fragmentação visual que se constrói a fluidez da música e da dança. Ao invés de filmagens, o filme utiliza apenas fotografias das mulheres falando, tocando e dançando. O movimento, então, é evocado pelo som, responsável por tecer e sustentar a narrativa.  Deste modo, tal qual a proposta do Ilú Obá de Min, que recupera histórias silenciadas por meio da manifestação sonora da cultura afro-brasileira, O tambor me chamou coloca a textura das vozes, o relato e o batuque em primeiro plano.

O bloco é um evento criado na relação entre a bateria e o público. É uma experiência física, na qual os instrumentos tocam e a vibração do som é sentida na pele de quem assiste. Isso, todavia, não pode ser transposto para o audiovisual, que anula o aqui e agora, a presença física e material dos corpos. Nesse contexto, o uso de fotos, ao invés de vídeos, aparece como solução para a manutenção da relação entre a obra e o público. As imagens borradas e a montagem apenas sugerem o movimento, que é criado mentalmente no ato de assistir à obra. O curta transpõe, então, não a experiência do evento, mas a dialética entre o bloco e a espectatorialidade.

iluoba

A coletividade do Ilú Obá de Min é, também, um dos elementos ressaltados pela estrutura do filme. Em diversos momentos, há a transição de uma foto de uma mulher entrevistada sozinha para outra foto com todas juntas. Isso é feito utilizando o recurso da sobreposição, que faz com que, por alguns segundos, vejamos as duas imagens simultaneamente, reforçando a ligação entre cada membra e o grupo. Além disso, a opção por fotos rompe com a sincronia entre imagem e som. Com isso, não sabemos se quem vemos é quem escutamos, o que retira os relatos do campo do sujeito único para a possibilidade da existência de múltiplas vivências correlatas.

Sem a pretensão de reproduzir e representar o Ilú Obá de Min em tela, Marcos Cruz opta por capturar um retrato, por registrar relatos. Sabendo que alguns eventos não são os mesmos sem a presença, é preciso criar outros tipos de relação, pois o bloco depende tanto  da ligação entre público e bateria, como também da coletividade, da junção de fragmentos. É a partir do toque de cada instrumento que se forma a densidade sonora, a pulsão e a força do grupo. Assim, o filme nos mostra que o tambor, na verdade, chamou muitas!

• • •

¹ Ilú Obá de Min é um bloco de carnaval que tem sua bateria formada exclusivamente por mulheres, que desde 2005 saem em cortejo pelas ruas de São Paulo, reverenciando e enaltecendo a cultura afro-brasileira, além de destacar a participação e protagonismo das mulheres no mundo.


Borboleta
por Giovanna Mastena

Borboleta, curta de 1977 de Shūji Terayama, parece funcionar como resposta à lógica do "ver para crer", do mito da suficiência da visão como decifradora da realidade projetada diante dela. Mas, como conceder a algo que só pode capturar pequenos pedaços de "verdade" por vez, sem contextualizá-los, a plena potência de entender a realidade? Como ignorar o trabalho desempenhado por outros sentidos na experiência do real? Como dizer que a visão é suficiente, se a imagem vista por um, representa algo completamente diferente para outro?  Ver não é suficiente. 

E é justamente na tentativa de desestabilizar o status da visão que Terayama vai construir seu curta. Começa quando observamos um menino colocar uma borboleta morta sobre seus olhos e inicia então a sua jornada como observador curioso do ambiente em que se encontra. Os fatos que ocorrem são da ordem do bizarro e do transgressor, como se se abrisse uma outra dimensão da vida na qual comportamentos proibidos são enfim liberados.

vlcsnap-2021-03-08-19h53m03s293

Mas o espectador não compartilha de seu olhar, mas sim o de uma câmera-na-mão, observadora e acompanhante do menino em seu percurso. Mas, assim como o menino possui sua visão obstruída pela borboleta, a imagem mostrada pela objetiva também sofre inúmeras interferências. As diversas figuras que passam pela imagem nos levam a perceber que o que vemos se trata da gravação de uma projeção; diante dela há a sombra de espectadores que interagem com as imagens do universo em que o menino se encontra.

Gula, sexo e violência são então mostrados com um ar de fantasia, uma suspensão de qualquer sentido. As ações absurdas se sucedem sem relação entre si, sem diálogos e nem narração, o que levanta uma multiplicidade de discursos não-verbais capazes de acionar vários níveis da sensorialidade. A música quase constante, os ruídos quase sempre humanos, o uso das cores, fantasias, maquiagem e grande-angulares. Vemos, mas não conseguimos dizer com certeza o que é visto, favorecendo uma visão anti-naturalista.

Mas, se por um lado a exploração pictórica aponta para o ilusionismo, o tratamento do tempo e do espaço, lineares e bem delimitados (a jornada do rapaz, um quarto com um orgia bizarra), fornecem certa linearidade narrativa. Em contraponto, a multiplicidade de ações simultâneas no mesmo espaço impossibilita que todas sejam mostradas ao mesmo tempo, de forma que apenas fragmentos são exibidos, um de cada vez, segundo a perspectiva do menino. A insuficiência de se ver tudo ao mesmo tempo provoca a falta de nexo e realça a verticalidade do filme.

vlcsnap-2021-03-08-19h52m52s716

Quando há uma borboleta diante de nossos olhos, ou pessoas na frente do filme, é impossível ver a totalidade da imagem. Só nos resta supor o que está oculto. O mesmo acontece com a limitação do campo da objetiva. Tudo que foge da visão da câmera só pode ser imaginado. Em Borboleta é para esse aspecto da realidade, aquela em que apesar de não estar sendo vista por objetivas nem olhos,  continua se desenrolando continuamente. É para a existência do fora de campo que Terayama sempre aponta, porque ela traz uma noção de continuidade do tempo, uma certa angústia de não participação, fundamentais para compreender a insuficiência da visão. É preciso mostrar que ela é limitada para que ela não baste. 

O pulo do gato de Terayama é incluir no fora de campo a experiência do espectador, ao indicar sua presença pelas sombras que surgem na frente da tela projetada. Mesclando em uma só experiência, um deslocamento tão descontínuo quanto a distância espaço-temporal entre filmagem e projeção, que agora sobrepostas indicam o paradoxo da distância/simultaneidade entre relato e espectatorialidade. E quando os as sombras-espectadoras passam a encenar o que é visto em tela, a imagem, apesar de ter sido fragilizada o curta inteiro, é dada o poder de contaminação, de por em ação. 

Mas é um poder irônico: como algo insuficiente pode nos mobilizar tanto assim?

• • •